Ano passado sentei-me num auditório com mais algumas dezenas
de pais e mães para ouvir uma psicóloga discorrer sobre assuntos infantis. Por acaso era 2 de abril, dia em
que se comemora a conscientização sobre o Autismo, mas o roteiro da palestrante
não vislumbrava o tema especificamente, no entanto, o contemplou, infelizmente,
de uma forma dolorosa para mim, ou para qualquer pessoa que tivesse um mínimo de
laço afetivo com pessoas autistas.
Não esqueço uma das falas que dizia assim "Hoje é dia 2
de abril, vocês sabem? É dia do autismo né? É dia que a gente vê um monte de mãe
postando foto do filho no facebook 'olha,
meu filho autista' " e ainda finalizou com um "agora a moda é
ser autista" - tudo, claro, com direito a risinho de deboche...
E logo depois, a mesma 'psicóloga', enquanto falava sobre os
males do corpo que são gerados por 'falhas' comportamentais na vida das
crianças, ela citou o caso de muitos diagnósticos de autismo serem observados
nos abrigos de menores abandonados pelos pais.
Não lembro qual foi a primeira ou a segunda pérola, só sei
que numa delas, eu me levantei engasgada, com um grito no peito e uma vontade
de bater em alguém....mas sou pacata, fui embora com minha consternação, e só
desentalei depois de uma carta que escrevi pra palestrante.
É impressionante que eu,uma reles mãe, arquiteta de formação, saiba mais que
uma psicóloga, sobre um tema tão persistente na sua área. Provavelmente ela
seja uma seguidora de Freud, mas já é
antiga e ultrapassada essa teoria de "falta de amor dos pais" causar
autismo.
O conceito de “mães-geladeira”, sugerido inicialmente por
Kanner, difundido por Bruno Bettelheim ainda na década de 1950, defendia que o
Autismo era consequência de uma rejeição inconsciente dos pais, chegando a ser
tratado com psicoterapia para os pais nesse sentido de "restaurar" o
afeto.
Em publicação de 1979, uma das mães "tratadas" por Bettelheim diz assim: “Eles nunca estiveram
realmente interessados em nosso filho, mas solicitavam que meu marido e eu
comparecêssemos todo o tempo – o tratamento era direcionado em nós. Ambos
acreditávamos que nos amávamos antes de ir lá e, após este tempo, as coisas
nunca mais foram as mesmas, mesmo que já se tenham passado quinze anos. (...)
Não, ninguém amava mais alguém ou algo do que eu amava meu filho. Eu daria
minha vida por esta criança, pelo menor sinal de sua melhora. E eu faço isto
todos os dias”.1 Dá pra acreditar numa coisa dessas? Imagina a culpa
que os pais carregavam nas costas, a ponto de fazer terapia "para aprender
a amar"!
Resumindo, hoje, já se sabe por comprovados estudos, que em
um orfanato há tantos autistas como numa escola, como numa cidade, enfim, não
pelo infortúnio da falta de afeto, mas por ser um lugar tão provável de ter
autistas, como qualquer outro lugar na face da terra. Não existe essa incidência
maior lá, a não ser que seja por abandono da família, que desesperada, não sabe
como conviver com aquela criança diferente, mas aí, o abandono se dá após o
autismo, e não o contrário.
E quanto ao Dia Mundial da Conscientização do Autismo o que
posso refletir sobre a (des)graça de uma piada sutil? É que sim, realmente
precisamos desse dia, não para celebrar, mas para propagar o Autismo...para que
consigamos por fim extirpar esse conceito insano e cruel sobre a hipótese da
"falta de amor". É verdade: ainda existem muitos profissionais da
psicologia, principalmente os freudianos, que acreditam nos fundamentos de
Bettelheim.
É preciso que as pessoas saibam que o Autismo não é um
rótulo definido, mas sim um espectro, que torna cada criança diferente da outra...
Tampouco tem características estáticas, pois é passível de piorar, estacionar,
evoluir... Ela é deficiente na socialização, portanto depende da Sociedade pra
se fazer evolução.
É preciso ensinar as pessoas que autistas amam, abraçam,
sorriem, se divertem, criam histórias, desenham, estudam, inventam, beijam, e
olham nos olhos.
É preciso que todos descubram a beleza que tem dentro de
cada um, e que não são eles que se fecham para o mundo, mas sim, o mundo que se
fecha para eles.
Pois então, para quem perguntar porque mães postam fotos de
seus filhos autistas e vestem azul no dia 2 de abril, eu respondo: estamos
abrindo o mundo para nossos filhos!
Leiam, informem-se, e descubram o que é o Autismo.
Escolas e Clínicos da infância, estudem mais que qualquer
entidade! Saibam encaminhar suas crianças o quanto antes, sem medo da revelia
dos pais, pois o diagnóstico precoce beneficia e muito no tratamento.
Sociedade, respeite, compreenda e deixe-se conquistar, sem
preconceitos... Abram suas mentes e seus corações.
1 Fonte de pesquisa: Uma Pequena História do
Autismo, Cadernos Pandorga de Autismo, volume 1, de Fernando Gustavo Stelzer, publicação
de junho de 2010.