sábado, 20 de fevereiro de 2016

Carta à mãe "Neura" em Alergia Alimentar que um dia eu fui

Querida Marília,

Hoje cedo eu fiz algo que te alarmaria muito, se tivesse acontecido há uns cinco anos atrás: Peguei a faca do queijo coalho e cortei uma fatia do Bolo de Chocolate da caçula alérgica a leite e ela o comeu completo. E você não acreditaria que agora, na casa de minha mãe, eles ficam lado a lado na mesa: o bolo sem leite e o queijo! São tantas coisas, minha cara, que você custaria a crer que um dia eu fui você... a margarina sem leite é compartilhada com toda a família, ora entra uma faca que acabou de cortar o famigerado queijo, ora sai dela uma colher pra temperar a comida da "minha" filha (minha, porque não é mais sua, pois definitivamente, eu não sou mais você). Outra: a bucha de lavar pratos, faz muito tempo que é a mesma que limpa os utensílios de iogurte! Aliás, na geladeira da minha casa, você vai encontrar iogurte, requeijão, e outras coisinhas, sem medo, afinal minha pequena é tão consciente. Desnecessário aquela rigidez que você tinha na época que o primogênito tinha alergia a leite...Tá certo que ele era muito sensível, que ficou o trauma da anafilaxia aos 6 meses de vida, que cansou de todas as vezes que ele saía com a pele empolada de um brinquedo do play, ou da cadeirinha do carrinho de mercantil, ou dos braços do avô, da avó, do tio...sei que você tinha muitas inseguranças e poucas respostas, mas hoje, te asseguro: você poderia ter relaxado mais, aproveitado mais as festas, as casas dos amigos, os filhos dos seus amigos, as piscinas!, as viagens...ah, as viagens... você mal via a cidade que visitava, mal aproveitava a cama do hotel, estava sempre a preparar almoço da panela elétrica, lavando louça na pia do banheiro, descongelando jantar pra levar pro passeio seguinte..."aff" tadinha! Dá pena...

Semana passada, viajamos pra Gramado, eu, o marido, e as duas crianças. Lembra da última vez que fomos pra lá? Só o mais velho era nascido, ele tinha 2 aninhos, auge da Marília-Neura. Não visitamos as fábricas de chocolate (só de pensar em respirar aquele ar você já tremia, só andava com a mão na adrenalina auto-injetável), não experimentamos a gastronomia maravilhosa gaúcha, restou pouquíssimo tempo para os passeios (a velha produção alimentar de panela elétrica e a imensa bagagem). Hoje ele já está com  sete anos e tem uma irmã de quatro. Há um ano ele curou do leite, ou seja, há um ano, descobri que ele estava curado, porque pode ter sido antes disso... Ele também já come produtos com ovo, mas só processado! Porque depois que eu relaxei, sabendo que já estava curado do leite, comecei a oferecer produtos das festas, das lanchonetes, restaurantes...claro que alguns tinham não só traços de ovo, como o próprio ovo! Mas um dia, apenas uma única vez, deu errado. Ele tomou um sorvete e reagiu (até forte) com urticária...daí tive certeza, ele ainda não estava curado da alergia ao ovo cru, porque era o que tinha no tal sorvete: clara crua de ovo. Mas não recuei, segui firme e continuei oferecendo alimentos "da rua", até que tomei a atitude mais corajosa de todos os tempos: Cansada de tanto desmarcar os testes de provocação oral na alergologista dele (ora por causa de uma virose, ora por causa de um antialérgico), ofereci um alimento que eu tinha a certeza que tinha ovo, feito em casa. Deu certo, nenhuma reação. Daí certo dia EU-FRITEI-UM-OVO, e ele comeu TODO! Advinha? ADOROU! Lindo, sem marcas na pele, sem coceiras...

Fiquei lembrando de você nesse dia, Marília. Sabe o que você achava que iria fazer quando isso acontecesse? Quando pudesse preparar para o seu filho sua grande especialidade culinária da adolescência "Farofa de Bolacha Cracker com ovo frito"? Você achava que seria o dia mais feliz do mundo, que mandaria rezar uma missa de ação de graças, escrever um depoimento emocionante de 3 páginas... Mas você só seguiu para o dia seguinte, sem missa, sem depoimento, nem a médica você contou...

Então, hoje, ainda temos a moçinha mais nova alérgica a leite, apesar de que tenho dúvidas se é a leite mesmo. Ainda não testei soja, nem carne também. Mas já come milho sem reações e já está no leite com proteína extensamente hidrolisada e com lactose. Não tenho pressa de fazer o próximo teste, porque nossa vida tá muito tranquila agora, minha cara. Não tenho medo de viajar, de passear, de visitar os amigos, de ir nas festas...ela come traços e traços, faz exatamente tudo que qualquer criança faz, e um dia quem sabe, essa alergia fica enterrada definitivamente na nossa história.

Pra terminar, quero te dizer que você foi importante pra mim. Se você não tivesse existido, eu não teria o parâmetro pra comparar com a Marília que sou hoje, eu não saberia que você foi um erro...claro, um erro querendo acertar, que deixou de viver tanta coisa, que sofreu sem precisar sofrer...mas que bom, você ficou pra trás, e de você não sinto nem um caroço de saudade. Sou melhor assim, os meninos estão melhores sem você, estão muito bem comigo.

E se a Marília de hoje pudesse ter te enviado essa carta há pelo menos cinco anos atrás, ela te daria este conselho: "Arrisque. Tente até que faça mal. Só recue se fizer mal. Mas arrisque, tente, e não deixe de viver, porque morrer também é matar os momentos felizes que você deixa de viver, por medo."

Até nunca mais...

Ass.: Marília (sem Neura).

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O difícil desafio de se caminhar junto.

Estava procurando uma imagem para a publicação e achei que este
desenho do meu filho ilustra bem o tema: Personagens do joguinho Cut the Rope.
Todos são bem diferentes, cada um com sua habilidade, capaz de ajudar o herói na
conquista de seu objetivo: um doce, que geralmente está preso a uma corda, e é preciso
cortá-la, para que o doce seja saboreado. Os heróis, somos todos nós. As cordas são nossas
limitações, que podem ser superadas com as habilidades dos amigos, e o doce, claro, 
é a conquista da vida, seus saberes e prazeres.

Hoje eu vou falar novamente de Inclusão, porque preciso defender um ponto de vista, mesmo correndo o risco de ser mal interpretada. Em outras palavras, quero falar sobre os desacordos entre os passageiros de um mesmo barco. Acho importante  pensarmos que pode existir egoísmo, ironicamente, por parte também daqueles que lutam contra as políticas excludentes.

Existem "N" tipos de deficiências hoje em dia, cada uma tem sua variante e suas necessidades específicas. Até mesmo dentro de uma mesma patologia existem essas variáveis (como é o caso do autismo), o que torna a solução dos problemas de inclusão social cada vez mais complicado. Exemplificarei para melhor entendimento, narrando uma história "de faz de conta"...Ela acontece numa escola, até porque o ambiente escolar sempre será o melhor exemplo de convívio social. É a amostra mais próxima da realidade e, acertadamente, a primeira experiência humana de convívio e relacionamentos entre diferentes classes.
Era uma vez, uma escola que sempre acolhia todas as formas de ser diferentes, em todas as variáveis físicas, psíquicas, religiosas, étnicas, antes mesmo que houvesse leis que assim estabelecesse. A metodologia, a filosofia e ideologia apoiava a diversidade, mas ela (escola) não acompanhou a evolução do processo de direitos de todos, inclusive os dos deficientes que ela tão desbravadamente recebia, e eram muitos! Havia crianças com doenças neuro-muscular, com Síndrome de Down, com deficiências de locomoção, autistas dos mais diferentes níveis de severidade, e em muitos deles, inúmeras outras comorbidades. Naquela instituição convivia-se com a diversidade desde os primeiros anos, e apesar de todas as peculiaridades de humanização que eram proporcionadas, alguns direitos eram negados e algumas políticas ignoradas. Até que um dia surgiu uma Lei que dizia assim: "A partir de hoje, fica decretado que toda escola deve proporcionar a acessibilidade dos alunos com necessidades específicas devido a deficiências, possibilitando a estes o direito de alimentar-se de todas as opções de alimento, transitar em todos os espaços de estudo, participar de todas as atividades de aprendizado e recreação". E essa tal lei mudou tudo, porque no dia seguinte, todas as mães se manifestaram revindicando mudanças, e a escola por fim tentou agradar a todos.
Primeiro mudou o cardápio da escola tirando todos os ingredientes que tinham leite de vaca, o que deixou as mães de crianças com alergia alimentar muito felizes, porém, a mãe do que não comia quase nada, ficou revoltada, pois o mingau de farinha láctea e o sanduíche com queijo eram os únicos itens que ele aceitava bem;
Segundo incentivou a capacitação dos professores para os transtornos do espectro autista, o que resultou uma série de adaptações metodológicas na rotina em sala. Foi o bastante para que algumas mães questionassem as mudanças por acharem que procedimentos desenvolvidos para autistas não serviam para crianças "normais";
Finalmente, iniciou o processo de implantação do elevador para que as crianças com dificuldades de locomoção pudessem acessar o piso superior. No entanto, isso demandou aproximadamente 60 dias dentro do período letivo, durante o qual, as turmas com cadeirante foram relocadas para o piso térreo, na única sala possível, pois todas as outras estavam ocupadas, sem possibilidade de serem alteradas. Mas a experiência não teve sucesso pois as crianças autistas ficaram extremamente agitadas e dispersas na nova sala, devido às características de espaço, conforto ambiental e acústica.
Concluindo, todas as medidas geraram polêmicas, discussões, reuniões devido ao descontentamento dos pais de alunos. A satisfação de um causava a angústia em outro. 
O que seria necessário para essa história ter um final feliz?  
  • Compreensão da realidade; 
  • Parceria nas dificuldades; e 
  • Tolerância nas diferenças.

Para que a Escola enfim tivesse paz, precisaria que a mãe triste pelo cardápio sem leite entendesse que o filho dela poderia continuar comendo o que quisesse nas outras cinco refeições do dia; e que a mãe chateada com as alterações desenvolvidas em função dos autistas se informasse melhor sobre essas crianças, descobrindo que muitas são até mais inteligentes que o filho "normal" dela; precisaria também do "meio termo" por parte das mães de alunos com autismo e das mães dos cadeirantes, onde cada lado cedesse um pouco.

Essa história sai da Escola, vai pras ruas, para as redes sociais, transita no mundo. Não importa a necessidade que alguém tenha, se envolve uma futilidade ou uma luta humanitária de classes, de etnias, de religiões, de miseráveis, de homossexuais, de mulheres, de deficientes... por mais que uma dificuldade te sensibilize das demais, você SEMPRE vai priorizar a você mesmo, ao seu filho, ao seu ente querido, e vai passar por cima da necessidade do outro (muitas vezes, sem perceber), porque a diversidade é "diversa", se choca, se encontra, perpassa... E para ter paz na vida, assim como na escola, é preciso parar por um minuto. Parar, olhar em volta, pensar, ceder. Ceder aqui é sinônimo de tolerar. E por mais que uma Lei decretada te assegure um direito, antes de abri-la em seu peito, tente usar o seu bom senso de humanidade, tente "parar-observar-pensar-ceder"... Você verá que, ocasionalmente você pode dispensar sua vaga prioritária de estacionamento e exercitar-se um pouco por um caminho mais longo; que nem sempre você vai precisar ganhar inimigos para conquistar a implantação de uma rampa; que em algum momento sua bicicleta poderá desviar do carro parado na ciclo-faixa enquanto descarrega as compras na porta da casa dele, e você poderá seguir feliz sem precisar xingar o motorista nem publicar a foto dele na internet; e que você poderá aproveitar as imprevistas alterações na rotina escolar para ensinar seu filho autista que ele pode superá-las e adaptar-se...

É isto que eu queria trazer neste texto, que SIM, precisamos lutar pelos nossos direitos. Mas muitas vezes, a conquista destes, faz com que as pessoas passem por cima de outras, por um único motivo... Elas focam tanto no objetivo, que esquecem de observar o entorno, o caminho e as pessoas que caminham ali naquela mesma estrada. Sua necessidade não deve te marginalizar perante a sociedade, mas também não te torna o mais importante nem o mais frágil.

Todas as diferenças são benéficas numa sociedade democrática, e estamos apenas nos primeiros estágios do aprendizado para superar as dificuldades e integrá-las sem preconceitos, sem mitos, sem crimes e sem vítimas.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Quero falar de uma coisa...

Faz tempo que quero falar sobre uma 'coisa'... E agora me veio uma música do Milton que, por sinal, tem tudo a ver com essa coisa, que convivo já há tanto tempo, mas ultimamente, em especial nos últimos dias, acordei e dormi pensando nela: Inclusão. 

Falam de Inclusão "Social", mas eu falo de Inclusão na Vida. Porque sem poder estudar, trabalhar, locomover-se, divertir-se, alimentar-se... quando não se pode fazer essas coisas básicas, então não se vive. E somos todos humanos e evoluídos, mas sabemos que nossa história é intercalada por várias atrocidades, aberrações e, porque não dizer, maldades. Exemplo disso pintado pelo Holocausto, quando tivemos milhares de vidas delimitadas ou exterminadas, simplesmente por não pertencerem a determinado círculo da população. Esse episódio, assim como outros horrorosos, como a queima às "bruxas", a tortura na ditadura militar brasileira ou a barbárie realizada nos antigos sanatórios, enfim, muitos erros cometidos devido a intolerância entre seres humanos ficaram para trás, como capítulos vergonhosos da história. No entanto, nossa essência nos trai, desmente essa índole de civilidade que a modernidade nos contempla. Trai-nos quando precisamos de uma lei para que se concretize algo que deveria ser espontâneo e natural, sendo esta a Lei 13.146/15, a LBI, ou simplesmente, Lei de Inclusão. E devido a todo o burburinho, reorganização e polêmica envolvidos, resolvi justamente falar sobre essa coisa que deveria estar, como na canção, dentro do peito de cada homem e mulher desse planeta, isto é, se quisermos realmente um mundo para todos.

E o que Holocausto tem haver com Inclusão? Antes disso, vou relembrar das minhas aulas na Arquitetura. Foi lá que ouvi pela primeira vez o termo "Desenho Universal" que , praticássemos ou não, nos acompanhava a cada disciplina, e havia sempre aquela busca ideológica do "Espaço para todos", ou para o máximo possível. Resumindo, o que eu entendia, é que mesmo que não conseguíssemos em algum momento contemplar o todo, mas que fizéssemos o nosso máximo para alcançá-lo. Na prática, para você que não é arquiteto, explicarei grosseiramente a teoria do Desenho Universal: Pense na maçaneta da porta. Ela deve está há determinada altura do chão, onde todos conseguem alcançar e acessar o ambiente que ela guarda, o que seria aproximadamente 1,00 metro. Mas se ela tivesse há 1,60 da soleira, por exemplo, eu que tenho essa mesma altura ainda conseguiria manipulá-la, no entanto, minha filha de apenas 1 metro, não. Portanto, a altura padrão das maçanetas nas portas seguem o princípio de desenho universal, onde a grande maioria das pessoas são capazes de utilizá-la. Mas essa maioria, não é uma estimativa puramente numérica. Ela deve ser pensada com inteligência, coerência e justiça. Eu devo contemplar não simplesmente a "maioria", mas a maioria "possível", deixando de fora apenas o impossível. Por isso, eu quis citar o Desenho Universal depois de citar o Holocausto, e antes de falar sobre Inclusão.

Incluir alguém na sociedade é simplesmente SEGUIR a teoria do Desenho Universal e REPELIR (totalmente) a teoria do Holocausto.

Nós não queremos uma escola (ou praça, restaurante, museu, igreja) apenas para brancos, loiros e de olhos azuis. 

Já pensou se te privassem de entrar no cinema devido a algo que te foge do controle, tipo, por você ter olhos cor de mel? É uma analogia ridícula, mas serve para entender que é algo que nasceu com você, na qual te falta o poder de mudar, e que te caracteriza como pessoa. E de repente vem alguém e institui que essa cor de olhos é uma minoria e pode ficar de fora.

Agora vamos para a realidade: em vez de olhos cor de mel, tua característica é ser obesa. Daí você não entra no cinema simplesmente porque seu quadril não se acomoda no assento da sala de cinema. A inclusão deve fugir de julgamentos ou hipóteses, ela deve simplesmente incluir e pronto. Portanto, nem precisamos julgar se aquela pessoa obesa assim o é, por compulsão ou genética, ela deve ter o direito de viver, e isso inclui assistir um filme no cinema. Da mesma forma devemos ter prédios com rampas ou sistemas mecânicos de locomoção entre seus pisos, para que um cadeirante, um idoso, ou simplesmente o carrinho de bebê possa conviver de seus espaços. E qual a dificuldade de se colocar um quadro de rotina na parede da sala de aula, a fim de que o aluno autista possa se organizar melhor? Acaso este quadro atrapalharia os não-autistas? E a rampa, atrapalharia os que podem utilizar escadas? E o assento maior, dificultaria a ocupação por alguém magro? E seria muito difícil trocar a marca do pão da merenda escolar para aquela que não tem leite e contempla a criança alérgica? Não. No máximo, essas atitudes demandam um pouquinho mais de empenho, um tantinho mais de espaço, e um montante maior de amor ao próximo. Enfim, incluir é fácil. Não deveríamos necessitar cursos de Inclusão, como tanto tem sido propagado, mas infelizmente, precisamos. Mas que fique claro, que o primeiro item desse curso deveria ser "ponha-se no lugar do outro" e "amanhã, você pode ser a minoria que precisará ser incluída".

Agora, deleitem-se nas letras daquela canção que me veio na lembrança, sabendo que INCLUIR é o nome certo desse amor.

Quero falar de uma coisa
Adivinha onde ela anda
Deve estar dentro do peito
Ou caminha pelo ar
Pode estar aqui do lado
Bem mais perto que pensamos
A folha da juventude
É o nome certo desse amor

Já podaram seus momentos
Desviaram seu destino
Seu sorriso de menino
Tantas vezes se escondeu
Mas renova-se a esperança
Nova aurora a cada dia
E há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê flor e fruto

Coração de estudante
Há que se cuidar da vida
Há que se cuidar do mundo
Tomar conta da amizade
Alegria e muito sonho
Espalhados no caminho
Verdes, plantas, sentimento
Folhas, coração, juventude e fé
(CORAÇÃO DE ESTUDANTE -  Milton Nascimento e Wagner Tiso)




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